O estrago está feito

Os vídeos e fotos engraçadinhos de bichos e crianças não serão capazes de reverter o mal humor que vai rondar as relações sociais


Carlos Teixeira
Jornalista

Você está quieto no seu canto quando a sua parenta tenta uma aproximação. Pode ser sua mãe. Ou a irmã ou a sobrinha. Ou um parente, neto ou primo. Pode ser também um velho amigo. Independente de gênero ou idade. Um dia a sua parenta envia, para o seu WhatsApp, vídeos fofinhos, de criancinhas, cachorrinhos e gatinhos fazendo peraltices engraçadinhas. E mensagens com imagens idílicas, com reflexões "profundas" sobre a importância da paz mundial, acompanhadas por sons de flautas românticas. Só falta o incenso. cirr

Você não dá bola, nem para os vídeos, nem para a sua parenta, de quem você anda meio com preguiça. Muita preguiça, na verdade. Ainda mais que ela acha que, depois de tudo, de todas as conversas que você não conseguiu ter, porque ela não te ouve, aliás, jamais te ouviu, aliás, as coisas se ajeitam, como melancias atrás do caminhão indo para a feira. Ou como boiada indo para o abate. E, para você, ela não tem ideia sobre o abate para onde vamos todos nós.

Ela acredita, de verdade, que eleição foi eleição, águas passadas. "Agora, são novos tempos", pensa ela. "Até o Natal nossos espíritos estarão desarmados para o reencontro das pessoas de bem". Afinal, é a família.

Hoje, sem registrar reações aos vídeos fofinhos, a sua parenta volta à carga. Envia uma mensagem sobre um "projeto de emenda à constituição de iniciativa popular entregue ontem ao congresso nacional com número recorde de 2.500.000.000 (kkk o número tem exagero de zeros) dois milhões e quinhentos mil assinaturas...".  Uma bobagem sem fim, negada pelo site boatos.com. A mensagem abre com a frase "POR ESSA O GOVERNO, NÃO ESPERAVA (isso mesmo, uma vírgula inexplicável)." Clique aqui para entender a história.

Com a enorme preguiça em relação à parenta, você tenta fazer um exercício de controle da mente, uma meditação. Respira 30 segundos pelas narinas, de boca fechada, sentindo o ar entrando e saindo pelo nariz e tomando os pulmões. Percebendo o movimento do diafragma, desviando os pensamentos de qualquer coisa que possa gerar impactos sobre o seu sistema nervoso central. Sobre a sua atenção. Foco no paraíso imaginário.

Então, aparentemente calmo, você inicia uma resposta. Escorrega na memória recente e começa uma mensagem potencialmente agressiva. Mas apaga, pois mesmo com todo o esforço de eliminação de comportamentos e sentimentos negativos, a irritação te domina. E você não deve expressar a sua impaciência. Afinal, é sua parenta, há afetos da relação.

Até que você conseguiu se controlar. E manda uma mensagem absolutamente objetiva: "Para de ficar passando fakenews -- mentiras". Rapidamente, ela responde: "Vamos torcer que seja verdade e que se concretize. Beijos. Zé." Zé? Isso mesmo, ela te chamou de Zé. O que ela quis dizer com isso? Os objetivos permanecerão como incógnita, nem tanto porque você não tenha condições de teorizar sobre intenções explícitas ou implícitas, mas simplesmente porque você não deseja se envolver com novos sentimentos. Simplesmente releva, deixa pra lá.

A parenta até dá o braço a torcer e reconhece, na próxima mensagem, depois de receber o link confirmando que tudo é boato, que a coisa é falsa. Lamenta e, em alguma medida, reconhece a impossibilidade de medidas semelhantes às propostas do fakenews serem adotadas. Mas o estrago está feito.

A memória afetiva está abalada e você agradece a deus, qualquer deus que seja, que não chegam novas mensagens da sua parente. Você sabe que tentativas de reaproximação serão frequentes nos próximos meses. Porém infrutíferas diante do turbilhão de sentimentos que foram mexidos durante o processo eleitoral. Mensagens de amor fraternal, incondicionais, não serão suficientes, simplesmente pelo fato de que o cenário, agora, terá a marca de criação de grupos opositores, inconciliáveis.

Certamente, você tem certeza de que está excluído de pelo menos dois grupos familiares no WhatsApp, além daqueles que você saiu por vontade própria, onde regras mínimas de convivência e de aceitação de opiniões alheias eram quebradas por pequenos deslizes, quando alguém enviava mensagem errada para o grupo. Os próximos meses continuarão sendo de crescimento do fosso que separa as pessoas.

A cada medida que retira direitos de pessoas ou grupos sociais, a ausência de melhora da qualidade de vida, o aumento do número de pessoas sem emprego ou com empregos precários, histórias sobre dificuldades cotidianas, o aumento da criminalidade e, claro, a percepção de uma corrupção crescente, haverá um novo argumento contra a paz familiar, quando se acreditava que os laços familiares eram suficientes para garantir a união das pessoas de mesmo sangue. Nem vídeos fofinhos serão capazes de amenizar as dores das separações.




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