Não sei qual foi o momento mais feliz da minha vida
Em registros de memórias, grande parte da humanidade tem o seu momento mais feliz da vida. Os mais privilegiados têm vários. Aqueles registros marcantes, contados com prazer e saudade, puxados por suspiros, sem esforço ou sofrência. Encontros com familiares ou amigos. Casos engraçados de algum dia ou de uma viagem. A pessoa abre a caixa mental e retira de lá, em arquivos pessoais bem organizados e acessíveis, as recordações dos momentos felizes. Em álbuns, as fotos dos melhores momentos. Lembranças que fluem naturalmente, em formato analógico ou digital, articuladas em estruturas narrativas prontas para as apresentações nas reuniões sociais ou familiares. Enfim, em acontecimentos tanto banais quanto formais, as recordações alimentam a vida.
Mesmo sendo parte deste todo mundo das pessoas que tiveram privilégios de uma vida boa, com boas oportunidades, sinto que estou mais fora do que dentro do contexto desse humano comum, com vastas lembranças de eventos. Em vários momentos da vida tive a sensação de estranhamento. O sentimento de estar fora dos ambientes onde as pessoas encaminhavam suas histórias, cenários das tais recordações.
Como uma alma deslocada por momentos breves, parece que acompanhei a minha trajetória como espectador. Não que quisesse. O fato é que não consegui ser personagem principal nem mesmo na minha vida.
Não posso me acusar de ausência de eventos capazes de cutucar a mente. Futebol na rua com amigos. Torneio de cuspe no passeio. Maldades, como jogar ovos em ônibus lotado de trabalhadores. Dormir acampado no telhado. Festas na adolescência. Cursos iniciados. Finalizados. Formatura. Morar fora. Namoradas. Relacionamentos superficiais. Casamento. Nascimento da filha. Novo apartamento. Primeiro carro de quarta mão. Primeiro zero. Viagem à África, Estados Unidos, Paris. Guarapari. Porto Seguro, Cabo de Santo Agostinho, Cabo Frio ou Rio de Janeiro. Pernambuco e Olinda. Carnaval. Mudanças de endereço.
Há motivos para lembranças. Boas, por sinal. Mas a minha dor é perceber -- lá veio Belchior -- que, apesar de tudo o que fizemos, as lembranças soam como relatos burocráticos. São apenas registros. Não recordações afetuosas. Eu, que me considero criativo, vejo que sigo linhas retas. Na verdade, há toda uma história sem referências de afeto, da alegria que pode ter existido, mas que, como registro, parece apenas algo banal.
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