Recordações de um desatento

"Estou pouco me fudendo para os diagnósticos", assegurou Milrac, com tom agressivo e traços faciais que misturavam ódio e rugas maniacodepressívas. Funcionário de uma banca de jornais, reiterou a crença, ou o sentimento, de que foi muito prejudicado pela falta de concentração nas atividades diárias, desde os primeiros anos de grupo escolar até a fase adulta. Conformou-se em ser jornaleiro, por não ter condições de ser um jornalista, atividade que chegou a experimentar.


Entre as poucas recordações da infância e adolescência, Milrac lembra que as pessoas diziam que era disperso, desatento. Coisas assim. “Um dia, Milraquim chegará em casa arrastando uma cadeira presa por corda aos pés”, ironizavam os parentes. No pré-primário, uma professora chegou a registrar que o menino tinha um comportamento bastante afável, tranquilo. "Mas parecia um tanto distraído, até desinteressado, nas atividades com as outras crianças.

Outra lembrança, na adolescência, reforça a convicção de que a dispersão, ou déficit de atenção ou seja lá o que for, gerou problemas definitivos. Foi uma prova de inglês no Instituto Brasil Estados Unidos: "Eu era até bom no aprendizado da língua. Num dia de prova final, a tarefa incluía perguntas referentes a um filme passado na tela do auditório. Fomos avisados: um som daria início ao filme. Pensei: preste atenção. Repeti, em pensamento: preste atenção. Bip. Voei. Outro bip, voltei. Pronto. Levei ferro na prova". A resignação toma conta do olhar de Milrac.

 
Ele olha para cima e parece ser tomado pela revolta. "Caralho, agora entendo que eu jamais seria um aluno melhor do que fui". Com desempenho medíocre, atestado pelas notas, levou bomba no segundo ano do ginásio. Mudou de colégio. Completou o ciclo em uma escola de pouca expressão, onde jogou futebol, com todas as limitações de coordenação motora, e aprendeu história. Gostava do assunto, por sinal. Na escola teve, aliás, mais um fato curioso, digamos assim. Chegou a ser um bom goleiro, fazendo parte até da seleção de futebol. Mas tinha um sério problema. Era um bom goleiro até levar o primeiro gol. Depois de aberta a porteira, o frangueiro incorporava o corpo. O disperso assumia a posição. Passava tudo, para desespero dos colegas.

Nascido em junho, Milrac acreditava no zodíaco. E que ser geminiano talvez fosse uma grande vantagem. O signo ajudava, então, a explicar o comportamento. Livros que começava a ler e não terminava. Vários projetos ao mesmo tempo. A dificuldade de iniciar e terminar uma coisa. O desejo de ser padre em um dia e ateu no outro. "Cacete, ali estava o meu futuro inferno zodiacal e eu nem imaginava. Até achava graça em ser geminiano, com alguma orgulho com as múltiplas coisas na cabeça, os inúmeros planos, a inquietação imbecil da adolescência". 

Pois é. Do ponto de vista histórico, a psicologia froidiana, junguiana, comportamentalista ou behaviorista, ou seja lá o que, vivia a fase edipiana. Não é como hoje, quando psicólogos e psiquiatras disputam a primazia sobre a identificação das distorções comportamentais do ser humano, depois de formados em uma das dezenas de faculdades instaladas por aí. "Ninguém falava em Déficit de Atenção e Hiperatividade em meu tempo", garante Milrac, mais uma vez com o rosto rubro de revolta. 






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