Ludita, o distopista

Como Ludita Taiobeira, com seu pânico social, se transformou não só em um ludita, mas também em um distópico ser.

Meus pais, Lúcio e Diva Taiobeira, acharam que o nome Ludita era bem original. Vindos de famílias tradicionais, cristãs, frequentadoras de igreja aos domingos, onde pedir benção ao padre era tão obrigatório quanto respirar, para eles o nome pareceu de homem. De pessoa forte, decidida. Ludita Taiobeira. Nome diferente mesmo. Criativo. Como eles, com razão, nunca ouviram falar. Não devia haver no mundo alguém com registro batismal e cartorial parecido. A combinação perfeita de alcunhas, juntadas e misturadas em um novo nome para a posteridade.

A, por assim dizer, matemática da formação de denominações parecia muito clara. Lúcio e Diva, meus pais, pensaram algo assim: “Antes de alguém ser chamado de Paulo, por exemplo, não existia ninguém com esse nome. Parecia óbvio, pelo menos para os dois. Paulo, quando passou a ser vinculado ao primeiro menino, deve ter parecido estranho em algum momento da história do mundo”.

Então, foi necessário um casal cismar com a possibilidade de criação da nova denominação para chamar uma pessoa de Paulo. Um homem e uma mulher da antiguidade podem ter juntado pau com logarítimo ou losango, sei lá, coisas assim. Um pai autoritário, daqueles que se julgam o ó do borogodó de tão criativo, e admirador da matemática, como antigamente existia, por exemplo, para criar a nova alcunha. Quando os pais cismam de ser criativos sempre podem dar algum problema. Eu podia chamar Ualdisnei ou Palmolive. Ou Último, porque depois de mim meus pais não pensavam em ter mais filhos. E teriam de mudar meu nome para Antepenúltimo, se tivessem tal compulsão.

Se tivesse me nomeado de Mayconjecsson, algo assim, meus progenitores poderiam ter dificuldades no cartório de Taiobeira que, além de meu sobrenome é uma cidade no interior de Minas. Que, por sinal, eles adotaram como sobrenome. Lá, normalmente, os escrivães preferem nomes como José, Pedro, Maria, Carolina, Aderbal ou Carlos e Antônio e coisas do tipo, separadas e, às vezes, juntas. O mundo, no final das contas, não privilegia a criatividade. O ser humano é conservador, por natureza

Nasci em 1984, ano e nome do livro do escritor George Orwell. Um pouco de seção literária. O romance “1984”, publicado em 1949, reflete, de uma forma negativa uma visão sobre o futuro da humanidade. Como sou extremamente influenciável, passei a acreditar também na força da publicação em meus comportamentos subliminares. Tudo pode conspirar a favor ou contra algumas ondas de seu currículo. Mas isso fica para mais adiante.

Consideremos, agora, que cheguei ao mundo antes da popularização do computador, da internet e inteligência artificial. Também nesse caso, foi apenas coincidência o fato de que nunca ter sofrido com um apelido diminutivo, como Lulu, Luditin ou Luzinho. Nada parecia combinar com minha personalidade. E passei pela infância sob a influência de uma convivência pacífica com meu nome, sem que ninguém questionasse ou desconfiasse da constatação de que, nos dicionários de significados de nomes dos bebês, não houvesse uma referência sequer a Ludita. Lembrando apenas, antes que alguém venha com ironias, não havia Google. Mas na casa da madrinha Maria Auxiliadora, veja só como os nomes têm significado, existia o tal dicionário. Lá, era possível saber que Lúcio, meu pai, é o nascido com a manhã. E Diva significa divindade, que vem do latim.

Único Ludita de todas as chamadas em escolas públicas e privadas brasileiras, foi em uma instituição de ensino estadual, um grupo pré-escolar, que comecei, ou melhor, meus pais começaram a ter consciência do significado de meu nome. Logo pela “tia” Adalgisa, que significa lança de nobreza e indica uma pessoa que tende a se achar a dona da verdade. Foi ela quem lançou a chama da sabedoria em direção à minha família. Na verdade, foi a primeira professora a prestar atenção em meu jeito de ser, naqueles tempos de primeiros passos rumo à educação convencional.

Foi então, portanto, lá para os sete anos, que meu pai Lúcio e minha mãe Diva descobriram que Ludita tem significado sim. E não é nome de gente, nem de bicho. Nem de coisa. É de fenômeno histórico, por assim dizer. Eles ficaram sabendo de um tal Ned Ludd, inglês contemporâneo da época em que começaram a ser criadas as primeiras máquinas a vapor.

Ludd foi um dos líderes de um movimento que, naqueles tempos de primeira revolução industrial, no século 18, estimulou grupos de trabalhadores, que ainda não eram trabalhadores como os que conhecemos hoje, a quebrar máquinas como uma reação à Revolução Industrial que se iniciava então. Para os cidadãos da época, sem parentes importantes e vindos do interior, onde eram lavradores ou artesãos, a máquina representou a possibilidade de fim de suas atividades. Os seguidores de Ned Ludd viraram luditas, os que deram origem ao ludismo. O primeiro movimento de rejeição ao poder das máquinas como substitutas de gente.

A descoberta deixou minha mãe surpresa. Ao ouvir a história de Ned Ludd e das reações contra as máquinas ela remexia aqueles olhinhos pretos, como apenas as Divas podem ter. Sabe aquele movimento com os olhos que a gente faz quando se recorda de alguma coisa? Foi isso que ele fez. Para ela fazia todo o sentido do mundo. Ela até sorriu um gostoso e sonoro kkkk, como se já existisse WhatsApp na época.

Ela tinha razões para o riso. Desde os primeiros anos de vida, eu parecia ter uma vocação irresistível por quebrar coisas. Era a visita chegar com um brinquedo, entregar para mim e pruft,  proft, prum, não fica inteiro nenhum. Mais um brinquedo quebrado. Uma energia extraordinária vinha de algum lugar, com uma habilidade incrível para driblar todas as defesas da propriedade. É como seu eu jamais identificasse aquelas coisas que chegavam como minhas..

“Não quebre as coisas” , diziam, com a irritação típica das divas, a minha mãe e meu pai, na tentativa frustrada de barrar minha energia destruidora. Tem gente que, desde a infância, gostava de desmontar coisas para ver o funcionamento. Eu simplesmente quebrava. Fui ganhando dentes e aprendendo palavras e meus pais tentando argumentar que aqueles brinquedos novos eram meus amigos, que eles eram bons para mim e para as pessoas de uma forma geral. Sem esperar mudança de comportamentos, eles partiram para a repressão pura e simples, algo que era muito frequente naquele período entre os anos 1970 e 1980. Uma coisa assim, bem policial, barrando qualquer acesso meu a coisas parecidas com novidades.

Sob a força da repressão, cresci e aprendi a controlar os meus impulsos mais inconscientes de rejeição a tudo o que tivesse algum componente mecânico ou eletrônico. Adolesci, por assim dizer, com um interesse por coisas mais da alma e das relações do homem com a sociedade e com a natureza. Mas, por forças desconhecidas da natureza, aprendi a conviver com a emergente tecnologia. Aos dez anos, quando vi o primeiro computador a entrar em casa, colocando a máquina de escrever do meu pai em uma mesinha no canto, não tive ímpetos agressivos. Fiquei curioso, como qualquer criança no final da infância ficaria. Aceitei, e até curti, brincar naqueles joguinhos que vinham em disquetes - para quem não souber o que é, procure o verbete no Google. E boa sorte.

Nem tanto como um ludita, mas sendo Ludita, filho de Lúcio e Diva Taiobeira, completei os 18 anos em 2002 com boas notas em história e geografia. Notas medianas em biologia e português. E suficientes para passar em matemática, química e física. Adivinhe o que resolvi fazer no vestibular? Isso, você errou. Tentei passar em ciência da computação. Além de arquitetura, que parece ser o sonho de consumo de quase todo estudante, apenas porque na época a oferta de cursos era baixíssima. E estudante tem de contestar, né.

Passei raspando no curso de ciência da computação, “a profissão do futuro”, segundo todos os textos dos conselheiros profissionais que iniciavam a construção de seus blogs, antes de se transformarem nos atuais “coachs”. Como assim, eu, Ludita, no curso de informática, da área de ciências exatas, convivendo com aquelas pessoas estranhas, que eram capazes de fazer grandes proezas com os variáveis e números, mas incapazes de uma conversa saudável sobre a realidade. Percebi que a situação seria difícil para mim no dia em que perguntei para um colega o que significava variência. Ele me disse a fórmula. Repeti a pergunta. Ele repetiu a fórmula. Imagino que ainda hoje, sem ter precisado  de uma medida de dispersão das variáveis, que mede a distância entre as observações e sua média, ele não saiba o significado da palavra. Mas domina a fórmula, por repetição.

Constatada a minha inépcia para a convivência com as criaturas cartesianas, geradas nas certezas absolutas das ciências exatas, com o pragmatismo elevado quadrado, larguei a computação. Tentei o jornalismo. Aliás, fiz jornalismo. Foi na escola de comunicação onde assumi a minha outra personalidade oculta. Adotei com prazer desconhecido anteriormente um pessimismo intenso, a descrença absoluta na humanidade. Antes que algum idiota acuse a escola como um antro de “formação de comunistas”, influenciadora da minha personalidade, vou logo avisando: não tenho a menor dúvida de que a turma com quem compartilhei bebidas e cigarros tem um perfil próximo ao dos defensores do estado mínimo. Não há colegas que carreguem bandeiras vermelhas, com foice e martelo.

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